Excerto da “Carta dos Pais do Menino que não se Reconhecia ao Espelho”
do livro Eu sinto um tormento com a ideia
do fim definitivo de Maria José Vidigal e Maria Teresa Guapo
“Primeiro, há uma certa estranheza, que chega
aos poucos e acaba por se instalar como um mau presságio.
A nossa criança está ali, linda e perfeita como a sonhámos, ao mesmo
tempo não está bem ali. Parece estar noutro sítio, os olhos olham outro mundo
que nos escapa, a fala tropeça em repetições obsessivas que lhe atrapalham o
sentido.
Às vezes ri-se, um pouco a despropósito, dá
ordens a si própria como se fosse outra, fica muito triste e calada sem razão
aparente, parece desinteressada do que a rodeia, assusta-se desmedidamente com
alguns ruídos. Responde às perguntas como se fosse um eco, olha uma fotografia
e diz que aquele é o espelho.
Alarmados, percebemos que há qualquer coisa
que não bate certo e procuramos ajuda.
Mais tarde saberemos que tem perturbações autistas e é como se
tivéssemos acertado um pouco ao lado da vida: a imagem do nosso filho não se
ajusta completamente ao nosso filho. E o mundo em que ele vive não é
exactamente o mundo que existe, o que lhe trás uma enorme dor e a nós uma
grande impotência. Com essa sensação iniciámos uma viagem sem fim que nos leva
a tentar percorrer todos os dias e a todas as horas a distância que separa esse
desfasamento.
Pensámos, então, ter, em algum momento,
feito um disparate dos grandes que lhe provocou ‘aquilo’. Se calhar não lhe
demos a atenção que precisava, se calhar teve a atenção de mais, se calhar foi
da depressão pós-parto, ou talvez do stress durante a gravidez, ou daquele leve
desacerto em que os pais vivem e se acentua com o tempo até se transformar numa
fractura irreparável.
E a culpa difusa adensa a tristeza e a
confusão.
Mas depressa percebemos que, seja qual for a
causa ou as causas, o que interessa agora é aprender a viver com o problema e
‘dar à luz’ novamente – as vezes que forem precisas – este filho cujo
desenvolvimento perdeu a certa altura a harmonia.
(…)
…uma criança extraordinária que olha o mundo
com uma integridade desconcertante. Que não percebe a mentira, o fingimento, a
agressividade, a manha, as regras sociais, os duplos sentidos, que não convive
com as outras e tem interesses muito restritos. Mas que ao mesmo tempo se
expressa com um vocabulário muito precioso e elaborado, que consegue saber
todas as datas da História, investiga a complicada árvore genealógica da
família, faz desenhos que enchem as folhas de cor, inventa bandas desenhadas e
enredos de telenovelas cujos personagens são os colegas da escola e as
professoras.
Aos poucos, estes talentos são abandonados,
mas em compensação, as antigas obsessões são esquecidas, substituídas por
outras que por sua vez serão ultrapassadas, o discurso fica menos repetitivo e
o espelho que confundia o menino dá lugar à sólida imagem do adolescente que
luta pela conquista da sua própria identidade. Progride no estudo, ganha
autonomia, sentido de humor.
Sofre agora as angústias de todos os jovens
da sua idade ampliadas pelas dificuldades de conviver não só com os outros, mas
também com as regras do viver ‘normal’.
Vive na inquietação do futuro, no desgosto
do passado, no desassossego do presente. A mudança, qualquer mudança, o
assusta. A sucessão de lutos que é a vida de todos nós, é vivida por ele com
uma sensibilidade extrema que conduz sempre ao desamparo. Não tem ainda dentro
de si todas as armas que nos defendem das dores de estar vivo (…)”.
Matilde e Zé
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